A sonhadora
The dreamer
A sonhadora
The dreamer
Há dias em que se deixa levar pela melancolia.
There are days when she lets herself be carried away by melancholy.
Há dias.
There are days.
Há dias em que se entrega ao estado de sonho acordada, desejosa por encontrar saídas para a sua história. Há dias em que senta na cadeira de balanço junto à janela e sonha ser outra.
Olha pela janela.
Revisita a casa do passado.
There are days when she surrenders to the waking dream state, eager to find ways out of her story. There are days when she sits in the rocking chair by the window and dreams of being someone else.
She looks out the window.
She revisits the house of the past.
– Fecha os olhos. Consegues me ver? Estou aqui, sempre estive, a acarinhar-te nessa cadeira.
– Conta-me de ti.
– Já não posso. Fecha os olhos. Ouves os sons do assoalho? Os rangidos da vida daqueles dias? Ouves? Ouve com o corpo todo.
– Close your eyes. Can you see me? I am here, I have always been, cuddling you in that chair.
– Tell me about you.
– I cannot. Close your eyes. Can you hear the sounds of the floor? The creaks of life from those days? Can you hear? Listen with your whole body.
O corpo se move ao ritmo das passadas, das respirações.
The body moves at the rhythm of the steps, of the breaths.
– Tens medo, não é? Sei que tens. Sempre tiveste. Era quando olhavas pela janela do quarto, a moldura quadriculada e o bizotado a distorcer os contornos.
Ouço.
Arrasto o tempo pelos corredores de sombra.
– You are afraid, aren’t you? I know you are. You were always afraid. It was when you used to look out the bedroom window, the checkered frame and the beveled glass distorting the contours.
I hear.
I drag time through corridors of shadow.
– Sente a aspereza do chão, os veios da madeira desgastada. Como a tua pele. Como a minha. Sente dentro de ti o grito silencioso da árvore cortada, das árvores da infância, tão fora e tão dentro.
Sinto a delicadeza do perfume de lavanda, aspergido pela sala de visitas, antes da tua chegada.
– Sente. Dorme para que consigas ver. Para que consigas sonhar com as nossas mãos entrelaçadas na escuridão do quarto.
– Feel the roughness of the floor, the grain of worn wood. Like your skin. Like mine. Feel inside you the silent cry of the cut tree, of the trees of childhood, so outside and so inside.
I feel the delicacy of the lavender perfume, sprinkled in the living room, before your arrival.
– Feel. Sleep so you can see. So that you can dream of our hands clasped in the darkness of the room.
As paredes pulsam histórias.
The walls pulse stories.
– Por que te encolhes? É assim tão desesperador? Estou aqui. O grito preso na garganta desde sempre. A lágrima que não consegue brotar e escorrer. A lágrima seca de um grito mudo.
– Sente o sabor do passado, da melancolia dos dias estagnados. Sente-me. O desespero é nosso.
– Why do you shrink ? Is it really that desperate? I am here. The scream stuck in the thoat since always. The tear that cannot sprout and flow. The dry tear of a silent scream.
– Feel the taste of the past, of the melancholy of stagnant days. Feel me. The despair is ours.
– One day it was pleasure that united us. When was it lost?
Busco-te nas nervuras dos tecidos, nas frestas da casa, nos recantos em mim.
– We are prisoners of our promises.
Sinto o farfalhar das páginas viradas. Vislumbro os reflexos engolidos pelo espelho.
A luz toca o meu corpo nos lugares do prazer. As memórias gravadas se agitam. Conflitantes. Percorrem a pele em arrepio. Acaricio-me para me saber inteira.
I feel the rustle of the turned pages. I glimpse the reflections swallowed by the mirror.
The light touches my body in the places of pleasure. The recorded memories agitate. Conflicting. They run through the skin in shivers. I caress myself to know me as a whole.
– Somos prisioneiros das nossas memórias.
– We are prisoners of our memories.
O teu vulto a se desenhar nos meus olhos. Perco-me nele. Volto ao que fomos e os teus olhos acordam os meus sentidos na penumbra do corpo. O limiar entre os mundos é tênue.
Your figure being drawn in my eyes. I lose myself in it. I go back to what we were and your eyes wake up my senses in the shadows of the body. The threshold between the worlds is tenuous.
Estilhaços de luz.
Fragmentos dispersos na poeira que paira, coagulada.
Um desses fragmentos me fere. Abro os olhos abruptamente, a tempo de ver a poeira que assenta obediente no chão.
Splinters of light.
Fragments scattered in the hovering, clotted dust.
One of those fragments hurts me. I open my eyes abruptly, in time to see the dust that settles obediently on the floor.
Texto: Ana Gilbert
Fotografia: Frankie Boy
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